SOLDADO JESUS BERTOLUCHE
MONÓLOGO
ATO ÚNICO
TEXTO: Artênio Luiz Máximo da Fonseca (Artênio Fonseca)
COLABORAÇÃO NA PESQUISA: Adalberto Akira Yamasaki (Akira)
PERSONAGENS:
Jesus mais ou menos 53 anos
Jesus mais ou menos 14 anos
Professora
Pai de Jesus
Carlinhos
Narrador
Dr Augusto
Manifestante
Filho de Jesus
INTRODUÇÃO
Partindo do princípio de que uma obra teatral só se completa a partir do instante em que um grupo de pessoas inteligentes metem o bico, eu, propositalmente, enquanto dramaturgo, ator, diretor e público, tenho a preocupação de, enquanto dramaturgo, indicar o menos possível o que deveria fazer o ator, o diretor, o cenógrafo, etc. Procurando deixar o texto com uma carga geral de idéia, pretensões visuais, mas por outro lado deixando em aberto para que o diretor, o ator, o cenógrafo, o músico, o figurinista, o iluminador, o técnico de som, o público e quem mais fizer parte do todo do espetáculo, deve ter toda a liberdade de se intrometer no meu texto com seriedade, respeito e competência resolvam montá-lo. Sendo assim, deixo o texto para quem desejar encená-lo sempre com o desejo de que não está completo e definitivo ou que os encenadores tenham a preocupação de estar discutindo o que eu quis ou não quis com a obra a partir do meu ponto de vista. Assim, espero ter deixado claro que o meu trabalho enquanto dramaturgo termina no último ponto final que coloco no papel, mas que o trabalho dos encenadores seduzam esse texto, violente seus parágrafos, suas vírgulas, pontos finais, idéias, emoções, palavras, seus visuais, etc. tornando a obra teatral numa obra científica, dinâmica como é a arte, a ciência, a cultura, o homem e, sobretudo, a VIDA.
O TEXTO
ESSA VERSÃO: Hoje é a sétima escrita e a segunda registrada.
ASSINALO QUE O TEXTO: Um monólogo que tem vários personagens. Indicarei apenas os personagens e as falas, além de um pouco dos objetos de cena como: 1 (uma) mesa, 1 (um) copo d’água, 2 (duas) cadeiras, 1 (uma) cama, 1 (uma) bandeira do Corinthians, 1 (um) porrete, 1 (um) maço de cigarros, 1 (uma) caixa de fósforos ou isqueiro, 1 (um) penico, 1 (uma) carta, papel e caneta, 1 (um) ator e de preferência muita gente para assistir.
SOLDADO JESUS BERTOLUCHE
Texto de Artênio Fonseca
(Jesus entra de pijama com um penico na mão e um copo d’água, acerta o relógio e acende um cigarro, faz sinal da cruz no rosto, deita-se, apaga a luz e começa a fumar o cigarro pensativamente até que o sono chegue definitivamente. Batem várias vezes na porta e chamam por Jesus. Ele pega o porrete e sai caminhando na ponta dos pés no escuro e atende o chamado).
Jesus: - Quem é?
Voz: - Sou eu.
Jesus: - Eu, quem?
Voz: - O vizinho.
Jesus: - Que vizinho?
Voz: - O vizinho aqui do lado.
Jesus: - O que é que o senhor quer?
Voz: - Eu vim entregar uma carta que deixara aqui pro senhor.
Jesus: - Ah, tá bom. Pode deixar por baixo da porta... muito obrigado (Jesus apanha a carta e procura os óculos, senta na cama).
Uma hora dessas, carta do meu irmão? Ah, desgraçado, até que enfim se lembrou dos pobres, né? Eh, Tonhão danado, demora mas escreve né? Faz três meses que eu escrevi pra eles... (abrindo a carta)
“Ibaí, 25 de janeiro de 1984.
Caro irmão, espero que esta carta encontre você e a família bem. Fiquei sabendo da morte da sua mulher, mas infelizmente não deu para comparecer no enterro. Jesus, aqui as coisas andam mais ou menos, o progresso tá chegando, a cidade crescendo, cinema, televisão, telefone, tá todo mundo rancando café pra plantá cana por causa do Proalcool, o governo tá incentivando. Agora Jesus, é cana pra todo lado, tá acabando o feijão, já acabou o gado, quase não tem mais café, a gente só vê cana.
Olha Jesus, eu tô enrolando um pouco que é pra tomar coragem de te dizê que o pai matou a mãe e se matou.”
Meu pai matou a mãe e se matou? Não pode ser verdade uma coisa dessas... Não, não é possível. Meu pai ficou louco? Ô meu Deus, ô meu Deus do céu.
“Foi uma morte horrível, Jesus. Só não te escrevi antes porque você ia ficar de cabeça quente e podia fazer alguma besteira. O padrinho vinha fazendo uma briga danada pro pai entregá a terra pra ele plantá cana, o pai ficou muito nervoso e falou que ia matá o padrinho se ele viesse tomar o sítio e que só entregava a terra morto. Aí a polícia veio aqui, prendeu o pai e levou as armas daqui de casa. Quando ele voltou da cadeia, ele ficava emburrado num canto. Aí quando foi à noite, ele fez isso. Agora Jesus, nós estamos arruinados, eu nem sei o que fazer, tô pensando em tentar a sorte aí em São Paulo. Vou com a família pra ficar uns dias na sua casa, até eu me ajeitar por aí. Vamos chaegar por aí mais ou menos lá pro dia 25 do mês que vem, se Deus quiser, lembranças pros sobrinhos e um abraço do seu irmão, Antônio Correia da Silva.”
(amassando a carta) Padrinho desgraçado, meu pai trabalhou naquela fazenda a vida inteira, não ganhou nada, agora o desgraçado quer tomar a terra pra plantá cana pro Proalcool, vai pra puta que o pariu, safado, filho da puta. Se eu tivesse lá isso não tinha acontecido, porque eu acabava com ele e queria ver quem era o bom pra me prender. (joga a carta no chão). Também esse meu irmão é um bola murcha de mão cheia, vai ver que na hora que o pau quebrou, ele deixou o coitado do velho lá sozinho e saiu correndo de medo. Agora vem pra São Paulo com a família e tudo (sentando na cadeira), não sei pra fazer o que, um cara sem profissão e sem estudo, só sabe capinar e plantá, vai arrumar o que nessa cidade? Só se for passar fome e ficar me enchendo o saco, já chega os problemas que eu tenho, já tô por aqui ó. Ô meu Deus, ô meu Deus do Céu, será que as coisas quando começa a dar errado, tem que ser tudo de uma vez só. Ô meu Deus, ô minha Nossa Senhora, como é que pode? Um cara que nem o meu pai fazer uma coisa dessa, um homem honesto, direito, cumpridor do seu dever. Como é que pode? Porque eu vou te contar uma coisa. Homem que nem meu pai eu nunca vi... Quando eu era moço, ele queria que queria que eu fosse um doutor, um engenheiro, um médico, um advogado ou até mesmo um padre. Mas eu sempre fui meio burro pra essas coisas, sabe? Não gostava de escola de jeito nenhum. Primeiro porque era longe demais. E segundo porque eu não gostava mesmo. meu negócio era caçar passarinho, pescar e trabalhar na roça... isso é que eu gostava. E meu pai queria que queria que eu fosse doutor. Também eu não gostava lá dos moleques da cidade não, eles eram muito metidos e gostavam de me chamar de jacú, ô rapaz, ôce queria brigar comigo, era só me chamar desse nome, eu ficava verde de raiva. Quando eu ia pra escola, a minha mãe fazia uma panelona de farofa de ovo e carne, eu descascava uns quatro gomos de cana e caía na estrada. Quando dava a hora do recreio, aqueles diabo daqueles moleques, já ficava me esperando atrás da porta, só pra roubar a mina cana e minha farofa. Eu punha o pé n porta e eles avançavam, roubavam minha cana e farofa e saía correndo. Eu corria atrás, mas não tinha jeito, os moleques corria que nem o capeta. Ah, rapaz, mas um dia eu peguei um deles assim, que o bicho gritava que nem gato em mão de cachorro, porque sempre eu tive uma força de cão. Fiz nove anos e repeti. Cheguei em casa e tomei uma surra do meu pai d’eu ficar na água de sal. Eu tava com treze anos e ainda não tinha saído do primeiro ano. E toda vez que eu repetia eu tomava um pau do meu pai. Eu apanhava por causa disso e porque eu mijava na cama. Também rapaz, eu mijei na cama até os quatorze anos. Um dia até amarrei o pinto pra não mijar na cama, de noite quase morri.
E o meu pai já tinha falado:
Pai de Jesus: - Você presta bem atenção no que eu vou te falar, rapaz. Se você mijar na cama mais uma vez e repeti esse ano eu vou te dar uma surra que você nunca tomou na sua vida, porque o burro a gente trata é na pancada.
Jesus: - Eu fiquei quieto, mas se meu pai botasse a mão em mim mais uma vez, eu ia meter a faca na barriga dele. Daquele dia em diante eu já andava com uma faca na cintura.
Na sala de aula era todo mundo pequenino, só eu de grandão lá no fundo. A professora era uma tal de Maria Beata, puseram esse nome nela porque ela já tinha uns cinquenta anos e usava um sutianzão preto e um vestidão que parecia uma bruxa, ô mulherzinha desgraçada, não gostava de mim de jeito nenhum. Só gostava dos filhos dos fazendeiros e dos moleques lá da cidade, os inteligentinhos da classe. Ela dava a lição do beabá e matemática, e essa matemática diaba, não entrava na minha cabeça nem com reza braba... Ela fazia dois times, um de lá e outro de cá e começava a tomar leitura e tabuada. Na hora da tabuada era fogo, viu? Porque era nós de cá e eles de lá, que nem Corinthians e Palmeiras no Morumbí. Mas só que o meu lado sempre perdia, porque eu afundava o time.
O pessoal ficava louco comigo, até que um dia um viadinho lá da cidade falou:
Carlinhos: - Ahh, professora... Assim não dá, né? Com o Jesus não dá... Ele só erra, han, não acerta uma, assim não dá. Ah, ah.
Jesus 14 anos: - Caguetinha filho da puta...
Jesus: - Aí ela me pôs lá na frente e falou:-
Professora: - A partir de hoje eu vou tomar a tabuada de você sozinho, aqui na frente.
Jesus: - Eu fiquei lá, né...
Professora: - Jesus, quanto são dois mais dois?
Jesus: - Eu fiquei calado...
Professora: - Carlinhos vem cá filhinho, responde pra titia quanto são dois mais dois.
Carlinhos: - Dois mais dois são quatro, professora.
Professora: - Tá vendo aí seu cavalão? Seu burro, você não tem vergonha nessa cara não? Me responde quanto é quatro mais quatro.
Jesus: - Eu fiquei quieto...
Jesus: - Aí ela pegou a palmatória e meteu na minha mão.
Professora: - Responde. Cinco vezes nove, seu burro.
Jesus: - Aí eu falei...
Jesus 14 anos: - Não sei!
Jesus: - Ela meteu a palmatória na minha mão de novo, aquilo a minha mão inchando e o sangue subindo na cabeça, rapaz...
Professora: - Você vai ficar de castigo até aprender, seu burro, ignorante.
Jesus: - Jogou dois caroços de milho. Eu fiquei ajoelhado em cima daqueles caroços de milho e parecia que eles iam entrando dentro do meu joelho, rapaz.
Professora: - Me responde menino... (puxando a orelha de Jesus)
Jesus: - Eu não falei nada, mas se aquela vaca pusesse a mão em mim mais uma vez, eu ia acabar com ela...
Professora: - Pela última vez menino, quanto é cinco vezes nove? Quanto é cinco vezes nove?
Jesus 14 anos: - Cinco vezes nove é a buceta da sua mãe, sua vaca.
Jesus: - Peguei naqueles peitão dela e joguei uns quatro metros de distância. Ela caiu lá no meio das carteiras, ela caiu de perna aberta, levantou chorando, foi lá e me expulsou da escola.
Eu cheguei em casa e falei pro meu pai:
Jesus 14 anos: - Ó pai... eu não vou mais naquela desgraça daquela escola, não...
Pai de Jesus: - O que? Por que você não quer ir mais à escola?
Jesus 14 anos: - Porque eu bati naquela desgraçada e ela me expulsou.
Pai de Jesus: - Batendo na professora, Jesus, ah é? Então é assim que você faz força pra passar de ano? Eu te avisei, rapaz, que mais uma que você aprontasse, eu te quebrava no meio... fica lá de castigo. Um cavalão desses com catorze anos e ainda não saiu do primeiro ano (pega a cinta) Eu fico de sols a sol puxando enxada para ver se te dou uma vida melhor, um pouco de estudo e você só me dá desgosto, só me faz passar vergonha. E ainda bate na professora. (batendo) Seu safado, vagabundo, covarde.
Jesus 14 anos: - Ahn!
Jesus: - Ele era meu pai, rapaz... mas vagabundo eu não era, safado também não, covarde também eu não era. Aí ele meteu a mão na minha cara. Ah, moço, ah, moço. Aí eu não vi mais nada, passei a mão na faca e parti pra cima dele.
Jesus 14 anos: - Ó pai, o senhor nunca mais bata na cara de um homem, viu pai? Senão o senhor pode morrer seu filho da puta duma égua.
Jesus: - Quando eu ia meter a faca nele, minha mãe apareceu, gritando, chorando e pedindo pelo amor de Deus pra mim não matar ele.
Jesus 14 anos: - Ó mãe, a senhora arruma minha roupa, me dá uns trocados que eu vou cair no mundo.
(surge o barulho de motor de caminhão. Jesus gritando como se estivesse pedindo para o caminhão parar)
Jesus 14 anos: - Ei, êêêêêi, ôôôô. Tá indo pra onde? Hã? Pra onde? Pra Ribeirão Preto? Me leva com você. Me leva. O que? A barra tá quente? Não tem problema não. Eu enfrento qualquer coisa. Me leva. Cê leva? Peraí! Tô indo!
(barulho de caminhão se afastando)
Jesus: - Fui trabalhar em Ribeirão Preto. Lá era barra pesada, viu, rapaz! Fiquei lá tres anos e era assim... O cara entrava e não saía mais, porque nós trabalhava de sol a sol, ganhava uma micharia danada... e o que ganhava ficava no armazém do homem. Se o cara quisesse sair ele tinha de fugir. E pra fugir? Pra fugir era fogo, viu rapaz? Mas eu tive muita chance pra fugir, só não fugí rapaz, porque eu arrumei um caso com a mulher do administrador da fazenda. Ela era uma italianinha baixotinha assim, dos olhos azuis, ó! Bonita viu? Te juro por Deus que no começo eu não queria, mas ela não saía do meu pé. Eu ainda pensava... essa mulher ainda vai me botar no rabo de foguete. E botou mesmo! Mas sabe como é que é né? Lá no meio do mato, sem dinheiro, sem mulher. Às vezes nós comia as vacas e éguas lá da fazenda porque não tinha mulher e as que tinha já tinha dono. Nós começamos assim, com aquelas olhadinhas de rabo de olho, bem de longe... E ela me provocava viu? Uma vez, rapaz, eu tava tomando banho no rio lá longe... aí passou um pouquinho e eu escutei a moita de café balançar. Passei a mão num pedaço de pau e fui ver quem era, podia ser uma onça, uma cobra. Que onça que nada, rapaz! Que cobra que nada, rapaz! Era uma sereia e já toda peladinha com uma rosa no cabelo. Eu levei um susto e ela falou: - Larga o pau Jesus. Sou eu... E veio rebolando pro meu lado... É rapaz, eu não vi mais nada.
Naquele dia nós metemos de tudo quanto é jeito, de cima pra baixo, de baixo pra cima, da esquerda pra direita, da direita pra esquerda, de revestres... Daí em diante eu comecei a gostar dela e ela gostar mais ainda de mim. Mas era só nós dois que sabia, porque se o marido dela descobrisse, ele ia matar nós dois. Mas nós metia mesmo, viu rapaz? Era debaixo do cafezal, no meio do mato, na beira do rio, qualquer lugar escondido, nós fazia surubada, êta diabo, êta tempinho bom que não volta mais.
É como diz o ditado né? Tudo que é bom pro pobre desgraçado dura pouco.
Um dia, eu tava chupando uns gomos de cana lá no topo do morro, bem tranquilo, passou um pouquinho, eu senti umas mãos aqui tampando meus olhos... - Adivinha quem é? Juliana... E não é que era mesmo, rapaz! Ah rapaz, ela me grudou por trás e ai Jesus, ai, ai, ai... E eu: - Calma, calma, aqui não dá, tá no meio do caminho, vamos alí.
Me lembro como se fosse hoje... O caminhão velho da fazenda tava lá no topo do morro, o sol tinha sumido e a lua clareava toda aquela região. Lá embaixo o pessoal dançava quadrilha e o cheiro da pipoca, do quentão e do churrasco ia longe, longe... Aí eu fui lá, calcei bem os pneus do caminhão com uns tocos, entramos lá dentro e começamos plóf, plóf, plóf... Esse caminhão velho balançava que nem navio em alto mar e plóf, plóf, plóf... Aí rapaz, esse diabo de caminhão despenca de lá de cima do morro, rapaz e vai descendo ladeira abaixo paaaamm... chegou lá embaixo e buuummm!! Entrou na casa do homem e arrasou tudo. Aí veio todo mundo pra ver o que tinha acontecido. Quando chegaram lá que viram aqueles dois frangões pelados, puseram a mão na cara; - Juliana?! Jesus?!... Ham! Eu nunca tive medo de nada, rapaz, mas aquele dia eu me mijei todo! O marido dela ficou bobo olhando pra mim e o pessoal olhava pra cara dele, pra nossa e pra’quela situação... Aí rapaz, deu um troço nesse homem, deu um negócio nesse cara que ele veio que nem uma vaca pra cima de mim: - Eu mato vocês dois, seus filhos de uma puta!!! Aí o pessoal segurou ele, apartou dalí, separaram e naquela noite mesmo eu juntei minhas coisas e caí na estrada. Vim pra São Paulo êêê São Paulo êêê São Paulo.
Narrador: - Nesse período a industrialização em São Paulo crescia cada vez mais. A retirada das pessoas dos seus lugares de origem em direção à capital da indústria transformara-se numa grande rotina.
Jesus foi trabalhar na Nitroquímica. Lá era barra pesada porque devido às más condições de segurança da indústria, era muito grande o índice de acidentes de trabalho com vítimas fatais. Era também constante os movimentos grevistas. Jesus sempre se omitiu de qualquer tipo de participação em movimentação política.
Jesus: - Saí da Nitroquímica, rapaz e arrumei três encrencas; casei com uma pernambucana, virei corintiano e entrei na polícia.
Mas agora as coisas iam melhorar, passei no teste da polícia, comecei a fazer um curso de soldado... Eu só pensava em ser um soldado honesto, competente, cumpridor do meu dever de patriota.
Na polícia eu já fiz de tudo até hoje... desde tropa de choque até motorista de secretário. Mas sempre fui honesto, graças a Deus, nunca tirei um tostão de ninguém. Hoje, eu não tenho onde cair morto, mas graças a Deus eu tenho a consciência tranqüila. Sempre fui esforçado e corajoso e logo já tinha a confiança de todos os comandantes.
Aí um dia numa festa, conheci uma pernambucana arretada, me apaixonei e logo casei. Arrumei três filhos e fechei a fábrica. E quando nasceu a minha filha? Eh rapaz, aquele dia foi uma correria... Eu tava caçando bandido, cheguei na delegacia e recebi o recado, fui correndo pro hospital. Cheguei lá e ela tinha nascido, não era hora de visita e eu fiz a maior confusão lá dentro e consegui entrar. Subi lá no quarto e a minha mulher tava toda contente... Mas que bichinho bonitinho, que coisinha pequenina, parecia uma bonequinha viva, ela deu uma abridinha assim no olhinho... e era os olhos do pai. Deu uma mexidinha assim com a boquinha e era a boca do pai. Era mais bonita, mas era o pai de ponta a ponta. Puxa vida, rapaz! Muda tudo na vida da gente... na cabeça muda tudo. Eu vou te contar uma coisa, tinha dia que essa menina chorava dia e noite sem parar, não deixava ninguém dormir, mas eu não tava nem aí. No outro dia eu ia trabalhar contente, feliz... nunca tive tanta felicidade na minha vida. Pus o nome dela de Juliana, mas se a minha mulher soubesse quem foi Juliana na minha vida, ela mandava me capar. Mas essa menina chorava viu? nossa senhora! Era um cuên, cuên, cuên que ninguém aguentava. A minha mulher ficava doida. Não sabia se era fome, dor de barriga ou dor de ouvido e desgraçava a chorar também. Aí que era fogo viu, rapaz? Eu tinha que aguentar as duas chorando. Quando a gente ia dormir, era só pegar no sono que ela começava tudo de novo: cuên, cuên, cuên. Aí a mulher endoidava de vez, xingava, chorava e falava:- Ô meu Deus, pra que eu fui arranjar filho? Ô meu Deus, se eu soubesse que era assim eu não arrumava... E lá vai eu de novo:- Calma mulher. No começo é assim mesmo, no começo a gente sofre que nem bandido na mão do compadre Fleury. Mas depois é só felicidade. É só alegria. Alegria. Felicidade. Alegria e felicidade uma porra rapaz. Uma ova! A desgraçada mal completou quinze anos e já se engraçou com um vagabundo que apareceu lá na vila. Um cara mal encarado, vagabundo, não gostava de trabalhar, só andava com más companhias e ainda queria casar com a minha Juliana... Han! Só se passasse por cima do meu cadáver! Só depois de eu morto, porque comigo vivo, não... entrava ele e ela no pau.
Um dia, rapaz, eu peguei os dois no escurinho no maior esfrega-esfrega. Ah rapaz... mas eu dei um pau tão grande nesse cara, um pau tão grande e falei pra ele:- Olha aqui, rapaz, você some da vida da minha filha, porque senão eu te mato, seu merda. Passou uma semna, ele sumiu messmo... mas levou ela junto. É! Levou ela com ele. Mas é assim mesmo, a gente tem os filhos, passa noites e noites acordados com os desgraçados, passa fome pra dar o que comer a eles... no fim, olhem o que eles fazem... com seus pais... arrumam um vagabundo qualquer e fogem. É assim mesmo. Mas para mim acabou. Agora eu tenho só dois filhos, porque essa aí eu não considero mais minha filha.
O outro também. Se envolveu com uma negrona lá, feia que dá medo. Mas tudo bem. Se amigou e foi morar bem longe. Só vem em casa de vez em quando. Tudo bem. Vive metido com política, os dois. Eles pensam que vai mudar o mundo... Nem Jesus Cristo que é Jesus Cristo não mudou, agora aqueles pangarés quer mudar... Eu já falava pra ele:- Você pára com isso, rapaz. Isso não leva a nada, greve não enche a barriga de ninguém. Eu sei quantas vezes nós baixamos o pau nesses caras... grevistas só toma pau e desemprego. Mas é a mesma coisa que falar com essa mesa, o cara não escuta. Então deixa quebrar a cara, quem sabe um dia ele aprende.
Mas o outro não! O caçula, aquele sim tem futuro. Todo dia levanta cinco horas da manhã, via trabalhar, chega em casa nem janta, já vai pra escola. Começou numa firma como office boy, logo já passou para auxiliar de escritório e foi indo... comprou um terreninho, abriu uma caderneta de poupança, só anda arrumadinho. Você precisa ver como que ficava assim de moça atrás dele. Mas ele sempre me falava:- Ó pai, primeiro eu quero terminar meus estudos, fazer meu pezinho de meia e depois é que eu vou pensar em casamento. Não fuma, não bebe, não joga, quase não sai de casa.
O outro tem a maior bronca dele, mas é pura inveja, viu? Diz que ele é burguesinho, capitalista, individualista, que tá do lado dos patrões, qlue não sei o que... Só sabe falar nisso aquele meu filho, rapaz. Aí eu entro no meio e digo: Vamos parar com esse bate-boca aí. O menino tá certo. Você fica aí com esse discurso todo, mas só vive na merda. Só vive desempregado, não tem onde cair morto, passa até fome. Você não faz nada pra melhorar e fica querendo atrapalhar o outro, rapaz... Deixa o menino em paz. Ele ficava louco, falava umas besteiras, passava a mão na mulher e no filho e puxava o carro. Ficava uns cinco ou seis meses sem vir em casa e quando vinha era para pedir dinheiro emprestado e pra deixar o filho pra eles ir num congresso, numa reunião não sei onde. Eu falava pra mãe dele não ficar com o menino, mas sabe como é que é. Vó é vó, né? E também o coitado não tem culpa de ter um pai e uma mãe irresponsável.
Mas o caçula não, o caçula é jóia. Ele só tem um problema, é santista roxo, roxo, roxo. Sempre foi. Um dia, rapaz, tava jogando o Santos e o meu Coringão... ele era pequenino assim, aí o Pelé fez uma embaixada na cara do Rivelino, ele tirou o maior sarro da minha cara, mas gozou, gozou, gozou... Passou um pouquinho chegou a vez dele, rapaz... O Flavinho pegou a bola no meio do campo e foi levando tudo no peito. Passou por um, passou por dois, passou por três... Vai, garoto! Cuidado! Olha o ladrão! Olha o macaco atrás de você! É isso mesmo, menino! Entorta esse nego, acaba com a fama desse gorila! Vai Flavinho! Vai, garoto! Acaba com essa defesa! Mata o goleiro! É hoje, meu Deus! É agora que nós quebra o tabú dos 10 anos ! Chuta , menino! Empurra ela pra dentro da rede! Vai! É gol! Gooooool
O moleque ficou doido da vida, rapaz. Levantou chorando com a cara emburrada, foi deitar e ficou tres meses sem falar comigo. Só porque o time dele perdeu e porque eu chamei o Pelé de macaco. Isso foi mais ou menos em 68, 69, 70... por aí...
Nessa época o negócio tava ficando bom, rapaz. Tava todo mundo comprando seu carrinho, sua casinha, sua televisão a cores, tava certo que era à prestação, mas tava dando pra comprar. Mais pra frente eu ganhei uma bolada boa no bicho, o Coringão bateu no Palmeiras, o Brasil faturou o tri e fomos indo. A gente ganhava pouco do mesmo jeito, mas naquele tempo as coisas eram mais fácil, o dinheiro valia mais. Tava ficando bom viu rapaz? Agora, comunista, comunista entrou no pau, não teve vez. Uma vez, nós prendemos um cara distribuindo panfleto em pleno dia 1º de Maio. Levamos esse cara pra OBAN, rapaz. Esse cara tomou um pau tão grande, mas tão grande, rapaz, que eu pensei que ele fosse morrer. Ficou uns dois meses apanhando que nem cachorro, mas não entregou ninguém. Comunista é fogo viu? Eles não respeitam a autoridade policial, por isso é difícil tirar a palavra da boca deles. Eles já tinham quebrado todos os dentes desse cara e ele não tinha falado nada. Até que um dia, rapaz, numa noite de domingo pra segunda, depois que esse cara já tinha ficado umas seis horas no paude arara, tomando choque elétrico no saco, levando chicotada de cabo de aço, resolveram parar com a tortura violenta no hoemem. Graças a deus... porque eu não aguentava mais ver aquele homem sofrer. Quando foi mais ou menos meia noite, era a hora de troca de plantão, aí mandaram esse homem tomar um banho, deram um lanche para ele e depois mandaram levar esse homem pra sala do dr. Augusto. Levamos os sujeito pra sala do homem e ficamos na porta fazendo a guarda.
Dr. Augusto: - Boa noite, sr. Jorge Mathias. Eu sou o dr. Augusto, fui destacado especialmente para continuar o seu interrogatório. Em primeiro lugar quero dizer que eu não sou partidário da utilização da violência nos interrogatórios, mastambém não faço nenhuma objeção. Nós estamos numa guerra e nessa guerra não existem leis, porque o inimigo é pior do que um camaleão, ora está presente numa igreja celebrando uma missa, ora está numa fábrica como um simples operário e ora infiltrado dentro dos nossos quadros policiais. Por isso, cada movimento em falso da nossa parte pode representar uma perda irreparável par o futuro democrático do nosso povo. Só quero saber o nome e paradeiro dos padres dominicanos. Quem são eles? Onde estão?
Jesus: - O homem não falava nada, lá de fora eu só escutava uns soluços.
Dr. Augusto: - Deixa de besteira moço. O senhor fica escondendo esses comunistas. No fim o senhor não vai levar nada com isso, vai por mim e além do mais isso tudo é uma farsa, a igreja é uma farsa, a igreja é a maior corrupta, agiota, anti-comunista, o Vaticano é a maior empresa do mundo, o papa detesta comunista, quantos padres são bichas, quantos tem amantes e o senhor ainda fica metido no meio dessa sujeira toda, moço. Você tem tres minutos pra começar a falar e se não o fizer, nós vamos ser obrigados a usar de métodos que você já conhece muito bem. Soldado Jesus traga a moço e os rapazes, rápido.
Jesus: - Ô rapaz. Eu vi tudo, participei, levei os caras, levei a moça. Eu não queria, mas não podia fazer nada, eu era obrigado e além do mais eu cumpria ordens e ordens na polícia são ordens.
Dr. Augusto: - Muito bem sr. Jorge Mathias, de agora em diante o senhor assume total responsabilidade pelo que acontecer à sua filha...
Jesus: - Pára! Pára! Pára! Naquele dia, rapaz, eu morri de vergonha da minha profissão. Quase que tiro o revolver e mato todo mundo. Porra, a menina era inocente, não tinha nem quinze anos... na mão daqueles puta gorilão com cada mandioca deste tamanho. Ô meu Deus, ô minha Nossa Senhora. Também o pai dela era um comunista burro... porque não falou logo? Depois de tanto sofrimento, tanto pau, agora é a coitada da menina que paga o pato. É fogo, é fogo, viu rapaz? A gente ver essas coisas e não poder fazer nada. O cara era comunista e nós tinha que defender a segurança nacional. Tá certo. Tá certo. Porra! Mas a menina não, a menina não tem culpa de nada. O homem desmaiou e mandaram levá-lo para a cela novamente.
Alí não tinha jeito viu, rapaz? Ou o cara falava ou ia morrendo aos pouquinhos. Só sei que no outro dia tava todo mundo morrendo de medo que o homem morresse.
Graças a Deus que me tiraram daquele inferno. Depois que eu quebrei o pau lá dentro e falei umas verdades bem ditas, me mandaram pra Taboão da Serra. Eu tinha que tomar tres ônibus pra ir e tres pra voltar. E ainda me fizeram ameaçãs, só não me ferraram porque eu tinha costa quente. Eu acabei de crer que eu não sirvo pra essas coisas não viu? Meu negócio é prender bandido, isso sim é que dá gosto n profissão. Fazer que nem filme americano... chega, mete o cano nos pilantras, dá um pau pra eles entregá o mocó e pronto. Aliás, foi pra isso que eu fui chamado pra trabalhar com o compadre Fleury. Porque eu era bom de pontaria e enfrentava os bandidos no peito. Comigo não tinha moleza.
Agora, homem bom tá alí, viu rapaz. O compadre Fleury. Aquele sim. Só tinha uma coisa, pra ele não tinha tempo feio nem preso mudo. Cara safado na mão dele tomava pau. Dei meu filho pra ele batizar com todo prazer. Quando ele morreu, eu fui no enterro e pá, pá, pá. Dei meus tiros em homenagem ao grande homem. Os inimigos falavam que ele se envolveu com traficantes na época do esquadrão. Olha, só se foi depois que eu trabalhei com ele, porque na minha época ele detestava essa gente.
Agora, que tem uns caras pilantras no nosso meio, isso tem, viu rapaz? Tem cara que é soldado pé de chinelo que nem eu, ganha uma mixaria e tem quatro ou cinco casas de aluguél. Onde é qu esse cara arrumou dinheiro pra comprar essas casas? Do salário dele uma óva rapaz. O outro é investigadorzinho de merda e manda mais que o secretário. Onde é que ele arranjou essa força toda. Da capacidade dele? do trabalho dele? Da capacidade e do trabalho dele uma óva, rapaz. É uma panelinha desgraçada.
Ôce vê, nós fizemos a revolução foi justamente para acabar com essas coisas, o esquadrão foi pra melhorar, o AI-5 foi pra melhorar, mas piorou tudo, piorou. Não sei porque nós fizemos aquela pressão toda em 64. Pra ficar pior? Ora, se fosse pra nós fazer uma revolução pra ficar pior do que já tava, deixava daquele jeito mesmo. Pelo menos naquele tempo as coisas era muito mais fácil, o dinheiro valiaa muito mais. Agora não, ôce vai comprar uma porcaria dum quilinho de carne de segunda, tá uma fortuna, um ovinho de franga de nada tá um absurdo, uma pinguinha de merda já aumentou de novo. Tá uma bagunça desgraçada, corrupção virou moda, virou festa roubar dinheiro do povo.
Cê vê, hoje eu não tenho nada, tô velho, doente, sem pai, sem mãe, sem filho, sem mulher, morando aqui nesse quarto qu mais parece um cubículo do que uma casa pra um policial morar. Mas se eu não tivesse sido tão besta e trabalhado a vida inteira com honestidade, hoje eu tava numa boa. É assim, rapaz, só tem valor nessa terra, quem rouba e é desonesto, porque o resto só se ferra, eu era e sou homem de confiança de todo policial e delegado, graças a Deus. Mas o que adianta eu ser homem de confiança, homem de respeito? Isso não enche a barriga de ninguém. Se eu não tivesse um taxinho pra trabalhar nas horas de folga, eu tava até passando fome. Nem uma promoçãozinha eu ganhei nesse tempo todo. Comecei soldado e vou morrer soldado. Isso no papel, porque na verdade eu já fui parteira, investigador, escrivão, faxineiro, guarda-costas... mas sempre ganhando como soldado.
Também, agora eu quero que se foda o mundo que eu não me chamo Raimundo. Ninguém tá nem aí com nada, tá todo mundo querendo faturar o seu. Eu, como não tenho coragem pra essas coisas, vou lavar as minhas mãos e pronto. Agora eu vou esperar a minha aposentadoriazinha tranquilo, tomar as minhas cachaças e curtir meu coringão. Porque este sim! Tá certo que já me deu muita tristeza, mas também já me deu muita alegria. Não tem sujeira nem nada, só emoção.
Que nem uma vez que eu ganhei uma bolada no bicho. Fazia um mês que eu tava seguindo um milhar de porco e nunca dava, rapaz. Mas daquele dia não passava, eu tinha sonhado que tinha visto um caminhão carregado de porco batido num postee tinha morrido mais de cem leitãozinhos... e a placa do caminhão era a minham ilhar 6669 e no sábado tinha um jogo do Corinthiana e Palmeiras. Naquele dia eu falei: - Hoje vai dar porco na cabeça, mas no campo nós vamos comer os porcos com tripa e tudo. Foi dito e feito! Tirei a farda da polícia, vesti a farda do timão, passei na banca do Chiquinho e joguei cinco paus do primeiro ao quinto e cinco paus na cabeça, tomei umas cachaças e me mandei pro Morumbí. Foi um sarro, o Palmeiras fez o primeiro gol e a nossa torcida ficou murcha. Os porcos, pra provocar a gente, soltaram um cachorro no campo vestido com a camisa do Corinthians. Ah cambada de filho duma puta. Passou um pouquinho, chegou a vez deles. O Coringão foi lá e plóf, plóf. Fez dois em seguida e nós soltamos um porco com a camisa do Palmeiras. Nesta hora o escrete do rádio anunciou o resultado da Federal. Primeiro prêmio: 6, 6, 6, 9. 6669. Porco! Deu porco na cabeça! É, rapaz, lá embaixo o Coringão tava massacrando os porcos e la em cima eu ficava rico em cima do porco. Foi o dia mais feliz da minha vida! Eu no meio daquelas bandeironas branca e preta balançando no vento como um bando de andorinhas anunciando a primavera. Fizemos aquele Morumbizão gemer de felicidade. (gravação da multidão gritando: Corinthians, Corinthians!!! Jesus grita junto emocionado). Alí naquela festa tava todo mundo vibrando e eu só fazendo planos... Comprar um taxinho, faturar nas horas de folga, dar entrada em uma casinha, ficar livre do aluguel e olha o Jesus bonito na parada. (gravação do hino do Corinthians, com interrupções para Jesus dizer texto) Salve o Corinthians / Campeão dos campeões / Preto, branco, polícia, bandido, patrão, empregado, pai e filho / Eternamente dentro dos nossos corações / Salve o Corinthians / De tradição e glórias mil / católico, macumbeiro, comunista, operário, granfino, mendigo... todo mundo num grito só / Tu és o orgulho dos esportistas do Brasil / Salve o Corinthians / Campeão dos campeões / Eternamente, eternamente uma óva, rapaz! Uma óva! Nós passamos 23 anos sem ganhar um campeonato, sofrendo que nem suvaco de aleijado quando a muleta é nova. Mas graças a Deus em 77 acabou o sofrimento. Quebramos o tabú, faturamos o campeonato e daí pra cá só tamos bem na parada. Isso, o Coringão, viu rapaz? Porque o resto, a situação tava ruim... rapaz.
Nessa época a situação aqui em São Paulo tava ficando feia viu? 77, 78, 79, 80... o negócio tava pegando fogo. Era passeata de estudante, greve, movimento disso, movimento daquilo, parecia que o povo tinha virado a mesa, rapaz. Eu saía de casa e falava pra minha mulher:- tô saindo, mas não sei se volto vivo. Porque o negócio não tava fácil, a polícia tava toda de prontidão e a ordem era baixar o pau. Dava pra perceber que os grandão lá em cima tava morrendo de medo que isso aqui virasse uma revolução. Uma vez, uns colegas meus foram fazer a segurança de uma firma lá em Santo Amaro. Chegaram lá e pá! Mataram um tal de Santo Dias. Acho que na hora do desespero, né? É, rapaz, mas isso deu uma confusão, mas uma confusão desgraçada. Nossa Senhora! O cara era da igreja e logo já fizeram a maior agitação. No fim a boca esquentou, todo mundo tirou o corpo fora e o coitado carregou o processo sozinho nas costa. Tá errado! Às vezes acontece algumas coisas gozadas, viu rapaz? Fomos lá pra São Bernardo acabar com uma bagunça de metalúrgicos agitadores... chegamos lá, rapaz, e ficamos só acompanhando o movimento, só acompanhando o movimento. E eles cantavam, gritavam, xingavam... coitadinha da mãe do Maluf e da mãe do presidente da República. Só não chamaram esses mulheres de santa, porque o resto xingaram de tudo quanto é nome, a maior falta de respeito.
Narrador: - Naquele instante, enquanto a polícia cercava toda a cidade de São Bernardo do Campo, os manifestantes, em passeata, ocupavam as ruas e as praças.
Manifestante: - O povo unido / Jamais será vencido / Um, dois, três, Maluf no xadrez / Chora Figueiredo / Figueiredo chora / Chora Figueiredo que chegou a sua hora / Lutar / Vencer / Operário no poder / O povo / Unido / Jamais será vencido.
Jesus: - Ah, rapaz, aí veio a ordem pra nós baixar o pau e acabar com aquela gritaria toda. Empunhamos as armas e fomos fechando o cerco em marcha. Quando eles perceberam que a gente tava avançando, aí começaram a cantar o Hino Nacional. E nós avançando. E nós avançando. Aí ficaram com medo e começaram a puxar o saco: - Você aí soldado / Também é explorado / Soldado, irmão não entra nessa não. E nós avançando. E nós avançando. Aí rapaz resolveram sentar: - Senta / Senta / Senta. Sentaram todos, aquele monte de gente... a gente olhava assim e perdia de vista... Fechamos o cerco e o comandante mandou espalhar a macacada. Estouramos tres bombinhas de gás lacrimogêneo e espalhou revolucionário pra todo lado, não ficou um pra contar a história. Nessa hora até esqueceram a palavra de ordem, o povo se desuniu, saiu vencido e ainda saiu chorando. Saíram, mas voltaram, desgraçados. Voltaram e começaram a ofender a gente, jogar pedra. Aí virou guerra, né? Porque o comandante mandou jogar bomba de efeito moral. Aí é que foi legal, viu rapaz? Ver aquele bando de comunista agitador sair cagando pelas pernas abaixo e vomitando por tudo quanto é buraco da cara. Mas logo acabou a brincadeira, prendemos meia dúzia de cabeças, jogamos no camburão e saímos pra prender o resto dos agitadores. Viramos uma esquina e lá na frente eu vi dois caras vomitando que nem mulher grávida. Quando eu cheguei bem perto e olhei direitinho... Era meu filho... era meu filho e um outro... Ah rapaz, quando eu vi aqueles caras, o meu sangue subiu na cabeça e eu parti pra cima deles: - O que é que você está fazendo aqui no meio dessa gente, rapaz? Eu já não te falei que greve não leva a nada? Agora eu sou obrigado a te prender. Você me mata de vergonha, seu merda!
Filho: - Prende pai! Prende! Joga no camburão e dá umas porradas! Vamos pai, prende os outros também! E amanhã terão que construir centenas de cadeias, porque cada companheiro que o senhor prender aqui hoje sairá nas ruas, milhares e milhares de braços cruzados. Das fábricas sairão outros milhares pelo Brasil inteiro a lutar pelos seus direitos, direito que é seu também pai, um simples soldado inconsciente. Prende pai! Porque hoje é seu dia, é o dia dos caçadores, é o dia dos militares sangrentos, dos patrões sanguessugas, exploradores. É o dia da corrupção, pai e do entreguismo. Prende, pai! Enquanto é tempo, porque um dia a casa cai e os patrões vão junto, os militares também. Prende pai e faça exatamente o que mamãe falou antes de morrer... prende pai! Anda! Bota as algemas, me manda pra cadeia, pra câmara de tortura, pra puta que o pariu...
Jesus: - Cala a boca! Chega! Chega, seu moleque safado! Chega! Já foi longe demais! Chega, senão eu esqueço que sou seu pai e te encho a boca de bala... Chega!
Filho: - Enche, pai! Descarrega essa metralhadora no meu peito, seu covarde. Atira! Quem comprou essas metralhadoras pra vocês fomos nós. Essa farda que você usa foi comprada com nosso dinheiro, esses carros, essas balas... fomos nós que fizemos, pai. Esses mesmos companheiros que o senhor joga bomba para conter. Fomos nós, porque vocês são uns incompetentes, uns inúteis, nunca produziram um parafuso sequer. Vocês são uns parasitas que usam dinheiro do povo pra depois massacrá-los. Atira, meu pai e depois diga ao seu comandante que matou o seu próprio filho para defender a segurança nacional, o poder dos militares, o domínio das multinacionais. Atira!!
Jesus: - Droga! Merda! Moleque malcriado! Eu só não acabei com a graça dele porque ele é meu filho, se não, tinha acabado com ele. (Pausa) Eu não sou contra, porra! Tá todo mundo passando fome. Cada dia que passa fica pior. Eu não sou contra, mas também não sou a favor, oras. Ô meu Deus, ô minha Nossa Senhora. Será que sempre vai dar tudo errado? Não, meu Deus... Eu não queria isso pros meus filhos não. Agora no fim da vida, a filha que eu mais gostava foge com um vagabundo. O outro se mete com essa gente irresponsável (anda na direção do quadro dos filhos). Não, Júnior, você não vai me botar num hospital de loucos não, meu filho.. Eu não tô louco não, meu filho. Só porque você ganhou uma posiçãozinha na vida, agora você me joga no lixo. Eu sou seu pai viu, Junior? Eu tô doente, mas não tô louco não! Porque louco são vocês, tá me entendendo? São vocês, tá me ouvindo? São vocês! São vocês! (Jesus começa a entrar num estado de nervosismo, alterado e descontrolado, desembocando numa crise nervosa, com grande desequilíbrio emocional) Juliana! Minha velha! Compadre! Meus filhos!...
FIM
3 comentários:
Artenio, velho. Reli o Soldado de um fôlego só, na urgencia acelerada pelas lembranças e emoções adormecidas que jorraram num jato incontrolável. Todas as emoções ainda estavam lá, intactas e à espera. Chorei e ri várias vezes, o texto é fóda mesmo. Eu, o Cléston e o Raberuan estamos fazendo o Projeto Integração e Rupturas, já fizemos 02 edições este ano, e devemos fazer mais 06 em 2010. Talvez voce pudesse fazer um trecho de uns 30 minutos num deles, tem até um dindinzinho. Um abraço do Akira.
Quanto foi importante Soldado Jesus nas nossas vidas. Para quem viveu aquele periodo de apresentaçoes carregando cenarios nas costas sem perder a fé e enchendo teatros, hoje nao pode ter medo de nada. Quem dera poder estar aiu perto de vc para reviver esse lindo espetaculo.
Salve, Artenio. Saiba que estamos interessados em realizar este espetáculo mais uma vez em são miguel! Abraços.
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